domingo, 11 de dezembro de 2011

“Êta mundo velho sem porteira!”.

Da Agência Carta Maior

DEBATE ABERTO

Por um mundo desnorteado

O Aurélio terá de ser revisto. A palavra “desnorteado” adquiriu um novo sentido. Queria dizer “aquele que perdeu o rumo”. Agora pode também querer dizer “aquele que encontrou o rumo”. Como dizia minha avó, que nada tinha de desnorteada, “êta mundo velho sem porteira!”.

Um professor amigo meu, de importante universidade germânica, esteve recentemente no Brasil, onde compareceu a alguns encontros acadêmicos de sua área: ciências sociais, econômicas, Brasil, América Latina, por aí.
Voltou desnorteado. E desnorteado com a palavra “desnorteado”, entre outras coisas. Esse amigo é um professor progressista, algo mais velho que eu. Simpático às causas sociais do Brasil e da América Latina, para não falar de outras.

Mas qual era o problema? “A auto-suficiência dos brasileiros”, confessou-me ele. “Eles não querem mais saber de nós”. “Nós, europeus, viramos uma referência negativa”. “E eles se referem a um mundo desnorteado, positivamente, isto é, um mundo que perdeu o Norte como referência, como modelo”.

Ele estava assustado. “Picado”, eu diria. “Ferido”, para ser mais exato.
Reconheci o sentimento. Encontrei-o por aqui freqüentemente, ainda que sob outras formas, em outras oportunidades.

Outro dia, conversando com outro amigo, tivemos uma discussão (no bom sentido, sem brigas) veemente. Eu dizia que o caminho recessivo da Europa sob a batuta do Consenso de Bruxelas era inevitável e catastrófico. Ele contra-argumentava que não havia esse risco, que isso era invenção de políticos, que a economia européia e mundial ia muito bem, que as instituições estavam defasadas em relação a essa nova realidade.

Mas, eu insistia, a economia aqui vai submergir. Enquanto isso, disse eu, até o pequeno Uruguai está se saindo muito bem, capitalizando um bom momento das commodities... Foi a conta. “Esse é o problema”, disse ele. “O aumento do consumismo vai destruir o mundo. É necessário, em algum momento, parar de crescer”. “Sim, eu disse, o planeta tem limites. Mas como convencer os chineses, por exemplo, a não ter automóveis, se o modelo mundialmente vendido é esse? Como dizer aos africanos: sim, nós, do primeiro mundo, podemos ter aquecimento, gastar gás, petróleo, etc. e vocês que continuem a esfregar pedras para fazer fogo?” (Confesso que eu também exagerei um pouco).

A perplexidade do meu amigo espelhava uma reportagem publicada recentemente pelo Spiegel Internacional, que fala da surpreendente calma dos alemães. Eles, na maioria, simplesmente não acreditam que a crise vá chegar até aqui, muito menos que já chegou. Planam sobre ela.
Essas duas conversas se referem a um problema crescente, que é o de encontrar referências comuns para um diálogo aberto. Muitas pessoas aqui continuam a ver a Europa como modelo universal (aí também...) e a considerar as alternativas que nos últimos tempos se desenharam na América Latina – do Sul, em particular, como fogo de palha, que logo vai acabar, se é que um dia deveria ter sido aceso.

Para esse tipo de horizonte, o Consenso de Bruxelas é um bem ou um mal traçado pelos limites da política, diante da falta de limites que a sociedade exige. A política objetiva a manutenção do poder, e a sociedade exige a liberdade frente ao poder constrangedor. Esse pensamento opera numa dissociação permanente entre sociedade e política, entre cidadania e poder. No entanto, esse horizonte mantém a Europa e sua organização como um limite. É capaz de reconhecer uma micro-organização, numa tribo da Amazônia, como uma alternativa viável ao poder central. Mas não um outro discurso de poder, que “descentre” o mundo e o “desnorteie”.

Em suma, muita gente vai permanecer “desnorteada” na Europa, no velho sentido, porque nós nos “desnorteamos” no novo.

Mas isso não quer dizer que o diálogo deva ser interrompido, como parece tentador fazer. Não é porque fomos nós – os latino-americanos – olhados durante séculos como “o atraso da história” que será justo nem conveniente simplesmente substituir os ocupantes desse “banco de castigo” da história pelos nossos antigos mestres. 

O melhor é jogar o banco fora.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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