Dois problemas absolutamente distintos de fornecimento de energia elétrica durante os governos FHC e Lula tiveram tratamentos absurdos na grande imprensa brasileira. O racionamento de energia do governo tucano ocorreu entre junho de 2001 e fevereiro de 2002, com duração de cerca de nove meses; o blecaute durante o governo petista (2009) durou cerca de oito horas.
Matérias do jornal Folha de São Paulo sobre o longo racionamento de energia tucano e sobre a falta episódica de luz de algumas horas durante o governo do PT revelam uma postura inexplicável da imprensa diante desses fatos tão distintos, tratados como se fossem a mesma coisa.
A bem da verdade, vale notar que a Folha foi o único grande meio de comunicação que ousou um pouco mais nas críticas ao governo Fernando Henrique Cardoso por este ter permitido uma crise que chegou a quebrar empresas e que infernizou por quase um ano a vida da população.
Os brasileiros começaram a saber que seriam submetidos a um racionamento draconiano de energia elétrica já em janeiro de 2000. A princípio, a imprensa se limitava a divulgar desmentidos do governo de que haveria tal racionamento.
Em 30 de janeiro 2000, um ano e meio antes do início do racionamento, a Folha publica matéria em que o então ministro de Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, garantia ser inexistente o risco de racionamento. Apesar da escassa cobertura do assunto pela imprensa, nas poucas matérias que foram surgindo nos meses seguintes o governo sempre negava o problema.
Seis meses depois, em 3 de junho de 2000, um ano antes do início do racionamento, Antonio Ermírio de Moraes entregou a Deus a possibilidade de se evitar racionamento de energia elétrica no Brasil a partir do próximo ano. “Se São Pedro não for brasileiro, nós vamos passar mal. Só Deus evitará racionamento“.
Três dias depois (06/06/2000), o ministro de Minas e Energia do governo tucano volta a negar o racionamento.
Até o fim daquele ano, a Folha só publicou sete matérias sobre o racionamento que ia se tornando cada vez mais inevitável. Em 19 de janeiro de 2001, ano em que seria decretado o racionamento, o jornal finalmente toca no assunto racionamento. Só que na… Califórnia.
Nos dias 20, 24, 27 de janeiro e em 17 de fevereiro, o racionamento de energia no estado norte-americano da Califórnia volta a ser noticiado na Folha enquanto o segundo maior país das Américas se preparava para mergulhar no maior racionamento de energia de sua história.
Em 3 de março de 2001, do nada, o jornal paulista sai na frente do resto da imprensa, que evitava o assunto, e, em matéria discreta que não ganhou nem chamada na primeira página, diz, em bom tucanês, que, “Se não chover em março, já a partir de maio é possível que o governo seja obrigado a adotar um controle no consumo de energia.”
Dez dias depois, a Folha volta a culpar São Pedro pelo apagão que até as rotativas do jornal sabiam que sobreviria. Em 13 de março de 2001, três meses antes do início do racionamento, o jornal paulista anuncia, ainda de forma discreta, sem chamada na primeira página, que “Falta de chuva já é preocupante”.
No dia seguinte (14/03/2001), a dois meses e meio do racionamento, o apagão virá boa notícia na Folha: “Poupar luz dará prêmio”. Vale a pena ler este trecho da matéria:
“O novo ministro de Minas e Energia, José Jorge, disse ontem que o governo adotará medidas de “racionalização” e não de “racionamento” para evitar o risco de falta de energia elétrica.
Essa possibilidade existe porque o nível dos reservatórios de água das hidroelétricas das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste está baixo. O objetivo da racionalização, de acordo com o ministro, é diminuir o consumo no horário de maior demanda.
De acordo com José Jorge, “racionamento é uma medida unilateral” que ainda não está sendo estudada. Já na racionalização, segundo o ministro, poderá haver incentivo para que os consumidores residenciais diminuam o consumo (…)”
Mais 3 dias e o racionamento, sempre longe da primeira página, já vai ganhando contornos de realidade. Detalhes de medida que não haveria vão sendo enfiados pela goela do consumidor. Em 16 de março, o jornal anuncia que “Iluminação pública e residências seriam atingidas por racionamento estudado”.
O único racionamento chamado pelo nome que ganha as páginas da Folha é o da Califórnia. Em 20 de março, a cerca de dois meses do racionamento verde-amarelo, o jornal divulga que “Racionamento volta a atingir” um estado da superpotência, o que parece sugerir que se acontece por “lá”, não haveria nada de mais se acontecesse por aqui.
No mesmo dia, ainda sem usar a palavra racionamento, a Folha diz que “Consumo de energia pode ter corte em maio”. Até então, o assunto jamais ganhara a primeira página.
Finalmente, em 22 de março de 2001, o jornal paulista reconhece, em editorial, que pode haver racionamento de energia do Brasil e faz uma espécie de crítica, ainda que com as devidas concessões à culpa de São Pedro. Sempre longe da primeira página.
Em 4 de abril de 2001, a menos de dois meses do início do racionamento, o jornal já utiliza o termo que define o que irá acontecer, mas continua se atendo aos esforços do governo para evitar que haja racionamento. Não há críticas, mas matérias sóbrias e técnicas, cheias de eufemismos.
No dia seguinte, o termo racionamento finalmente é substituído por “apagão” e a Folha anuncia que depois da Páscoa o Brasil será obrigado a economizar energia compulsoriamente. Mas o foco da matéria é na campanha publicitária “educativa” que o governo desencadeará, então, para que o consumidor faça a sua parte.
No dia 7 de abril de 2001, mais um editorial sem críticas que se limita a analisar a situação e a reconhecer que o racionamento é iminente. As palavras incompetência, imprevidência e as necessárias menções a falta de investimento não aparecem nem uma vez.
Em 12 de abril, a cerca de um mês e meio do racionamento, finalmente uma crítica na página de opinião. Carlos Heitor Cony escreve uma crônica ironizando a “modernidade” que FHC e a mídia diziam que o país alcançara no governo tucano, sob o título “Bela modernidade”. No mesmo dia, outra coluna culpa Antonio Carlos Magalhães – e não FHC – pelo problema.
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